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Multidisciplinaridade – mais uma tentativa

O tema da multidisciplinaridade está outra vez na ordem do dia, por via de uma recente iniciativa legislativa do grupo parlamentar do PS (Projeto de Lei n.º 974/XIV/3.ª). Trata-se de uma medida incluída num pacote abrangente que visa eliminar as barreiras existentes no acesso de profissionais qualificados às profissões reguladas.

Portugal tem sido alvo de críticas por parte da União Europeia e da OCDE pela existência de barreiras artificiais no acesso àquelas profissões. E, em concreto, no tocante aos compromissos nacionais, a eliminação destas barreiras fazia parte do acordo celebrado com a troika e, falhando mais uma vez a implementação desta legislação, entraríamos em incumprimento com o caderno de encargos associado ao Programa de Recuperação e Resiliência.

Tem prevalecido uma perspetiva comezinha e corporativista, assente no princípio de que o status quo protege as formas clássicas de organização das profissões reguladas, evitando alterações que redundem no enfraquecimento /desaparecimento de algumas, nomeadamente das práticas individuais. Mas a evidência empírica sugere que as barreiras no acesso às profissões reguladas não beneficiam nenhuma forma de organização em particular. Antes pelo contrário. Promovem o afunilamento de trabalho, especialmente na vertente do investimento estrangeiro, para uns poucos operadores selecionados em cada área, que funcionam como “apostas certas” para todas as questões. E, salvo raras e honrosas exceções, os beneficiários desta referenciação não são os que levam a cabo a sua atividade profissional através do modelo de prática individual, nem as sociedades de menor dimensão.

Algumas vozes mais acicatadas vêm também clamar que se trata de um “frete” feito às grandes consultoras que agora, para além dos serviços que prestam, poderão alargar a sua oferta para áreas que lhes eram antes vedadas. Na verdade, a indiferença e o silêncio sobre a nova legislação das tais grandes consultoras explica-se, já que este regime representa para elas uma ameaça significativa no plano da atração e retenção de talento que, agora, terá mais opções de empregabilidade. Beneficiarão os profissionais em causa, que verão, desde logo, o seu poder negocial reforçado no que respeita à vertente salarial.

Endereçadas algumas temáticas mais emocionais da questão, importa discutir serenamente se existe algum benefício efetivo decorrente desta iniciativa legislativa. E, existindo desvantagens, se as mesmas atingem de forma relevante os princípios fundamentais associados à prossecução do interesse público, por exemplo os relacionados com as liberdades, garantias e direitos de defesa, por forma a justificar a manutenção do regime atual, que proíbe a multidisciplinaridade.

Começando por esta última vertente, evidenciam-se as questões associadas à regulação e independência. Não se vislumbram, por esta via, obstáculos intransponíveis. O sigilo profissional, as regras de aceitação de clientes e os reportes obrigatórios, por exemplo, são facilmente assegurados por sociedades obrigadas a exercer exclusivamente uma atividade específica ou em parceria de atividades diferentes. Trata-se, no essencial, de garantir que cada profissional obedece às regras específicas que norteiam a sua profissão regulada.  Por exemplo, no caso do exercício da atividade de advocacia, o respeito pelas regras de deontologia e pela lei dos atos próprios dos advogados (com especial relevância no tocante à proibição da procuradoria ilícita). Nada que não aconteça já. Por outras palavras, a convivência no mesmo espaço, de prestadores de serviços profissionais de distintas atividades reguladas deverá resultar num regime ainda mais exigente, em que os mesmos ficam adstritos ao cumprimento das regras especificas de deontologia e de independência da sua atividade regulada e às regras gerais relevantes de independência e de conflitos de interesse, de natureza transversal, impostas pela sociedade para a qual trabalham.  O fantasma da existência de sócios de empresas multidisciplinares que não são profissionais das áreas reguladas cede perante a possibilidade de encerramento da atividade (e eventuais ramificações criminais) em caso de incumprimento da legislação aplicável. Não há notícia que em países como Espanha, França ou Itália, onde a multidisciplinaridade já é uma realidade há vários anos se verifiquem mais infrações aos estatutos das respetivas ordens profissionais do que nos países que ainda não adotaram este sistema.

A qualidade dos serviços prestados costuma ser enunciada como um óbice à introdução de um modelo de multidisciplinaridade. Mas as ordens profissionais manterão as suas prerrogativas no plano regulamentar e disciplinar. Não se pretende que profissionais que não possuem as qualificações necessárias possam exercer profissões reguladas. Permite-se que prestem os seus serviços obedecendo a todas as regras aplicáveis à sua profissão, em concreto, mas que possam recorrer, na sua própria sociedade, a profissionais de outras áreas complementares, eventualmente também reguladas, que permitem que o resultado final do serviço seja mais profundo e abrangente, fator crítico numa era em que as questões técnicas são cada vez mais transversais. Evita-se assim que um cliente que tem um problema complexo para resolver tenha de recorrer a várias empresas diferentes, com um resultado que, só por obra do acaso, será o mais sólido em termos de qualidade e coerência. E, como sempre acontece, o mercado encarregar-se-á de separar o trigo do joio.

Na vertente positiva da multidisciplinaridade, sobressai desde logo o tema do acesso à profissão. O atual regime penaliza excessivamente o acesso ao mercado de trabalho de profissionais habilitados à prestação de serviços em áreas reguladas. Um advogado não pode exercer a sua profissão em toda a sua plenitude numa sociedade que se dedique à prestação de serviços de consultoria, contabilidade e fiscalidade. Um engenheiro especializado em temas de sustentabilidade não pode exercer a sua atividade permanente numa sociedade de advogados. E, de igual forma, restringe seriamente a normal progressão profissional. Um fiscalista que não esteja inscrito na Ordem respetiva como advogado, exercendo a sua atividade numa sociedade de consultoria, e que deseje integrar uma sociedade de advogados no decurso do desenvolvimento da sua carreira, não o pode fazer sem recurso a subterfúgios legais.

Outro aspeto positivo da multidisciplinaridade tem a ver com a maior facilidade de instalação em Portugal de grandes sociedades multidisciplinares estrangeiras, gerando mais oportunidades de trabalho para os nossos profissionais e, também, a criação de empresas nacionais de prestação de serviços profissionais com dimensão internacional. Uma empresa que não funcione numa lógica de “one stop shop” nunca ganhará espaço em mercados mais competitivos em que estas barreiras já foram eliminadas. E isto é particularmente verdade numa fase em que todos estes constrangimentos servem para justificar decisões de investimento e de centralização de gestão noutros países geograficamente próximos, com resultados normalmente pouco positivos para a criação e manutenção de postos de trabalho qualificados em Portugal.

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