Tendo como princípio de um Estado de Direito, o regular funcionamento das instituições, a Constituição da República Portuguesa (“CRP”) estabelece ao Estado o direito, dentro de determinados limites, de expropriar o património dos indivíduos (sejam eles pessoas singulares ou coletivas). Em nome da supremacia do interesse público, é determinada a entrega compulsiva de recursos particulares ao Estado para que este desempenhe a sua função constitucional de construir uma sociedade livre, justa e solidária, tal como previsto no artigo 1.º da CRP.
Nada de errado em pagar tributos; afinal, necessitamos do Estado para tratar dos assuntos que a ciência económica denomina falhas de mercado, como é o caso da segurança social e saúde (artigos 63.º e 64.º da CRP).
Ocorre que a relação mantida entre os contribuintes e a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”) pode ser marcada por desentendimentos, os quais resultam na manutenção do contencioso fiscal e potenciam a sensação (já conhecida pelo tecido empresarial português) de imprevisibilidade e insegurança jurídica.
Os contornos subjacentes à Contribuição Especial sobre o Setor Energético (“CESE”) é um típico exemplo deste cenário antagónico entre Estado e contribuintes. Ainda que o Tribunal Constitucional (“TC”) tenha já concluído que a CESE não viola a CRP e definido ser ela uma contribuição financeira (uma das categorias de tributo em Portugal), não se identifica uma coerência quanto ao perímetro subjetivo de sua incidência, isto é, quem deve apurar e liquidar a CESE.
Um passo em frente foi dado em março deste ano. Os contribuintes da CESE, especificamente aqueles que integram o subsetor do gás natural, foram surpreendidos com a publicação do Acórdão n.º 101/2023, proferido pela 3ª Secção do TC. Nesse julgamento foi declarada a inconstitucionalidade da aplicação da CESE, com relação ao modelo legal com vigência em 2018, a uma determinada empresa que exerce as atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural.
Em síntese, entendeu-se que haveria violação ao princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP) exigir a CESE de um subsetor que não é responsável pelo financiamento do déficit tarifário que se verificava no setor da eletricidade. O TC entendeu que, com o advento do Decreto-Lei n.º 109-A/2018, de 7 de dezembro, a mera circunstância de todos os operadores integrarem o setor energético não é manifestamente suficiente para se poder afirmar que existe uma responsabilidade do grupo do subsetor do gás natural pelos encargos respeitantes a um problema específico do subsetor da energia elétrica.
Entretanto, poucos meses depois, dois passos atrás foram dados pelo TC no que se refere à aplicação da CESE ao ano de 2018 e o seu campo de incidência subjetiva. A 1ª e 2º Secção do TC, em cada qual dos seus respetivos julgamentos, indeferiram a pretensão de outras duas entidades do subsetor do gás natural que figuravam como recorrentes.
No Acórdão n.º 296/2023, proferido pela 2ª Secção, é possível notar um choque ao que foi decidido em março deste ano pela 3ª Secção. A maioria dos Juízes (4 vs. 1) da referida Secção entendeu que há uma estreita interdependência entre subsetores do grande setor energético e a partilha de bases de consumo, sinalizando um mesmo feixe de interesses económicos, unitário e consistente, de onde resulta a homogeneidade de grupo que suporta a incidência da CESE. Por conta disso, se fosse admitida a exclusão das empresas do subsetor do gás natural do regime da CESE é que haveria uma incompatibilidade com o princípio da igualdade.
A 1ª Secção, no julgamento do Acórdão n.º 338/2023, por maioria dos Juízes (3 vs. 2) também invocou uma distinta interpretação acerca do tema. Num primeiro momento, tal como consta em alguns trechos da decisão, reconheceu a interpretação outrora realizada pela 3ª Secção como “sugestiva”, inclusive referenciou aquela orientação com uma “bondade jurídica” (expressão essa que pode indicar ao leitor uma - incorreta - perceção de ironia).
O que mais chamou atenção foi o fundamento à manutenção da CESE, com relação ao modelo legal que vigorava em 2018. Entendeu-se que tanto a incidência objetiva quanto a incidência subjetiva da CESE são reportadas, por regra, ao dia 1 de janeiro do ano em que são cobradas, de modo que ela se torna devida nesta data. Por assim ser, a alteração normativa que foi o alicerce do posicionamento favorável aos contribuintes (isto é, o Decreto-Lei n.º 109-A/2018, de 7 de dezembro) entrou em vigor apenas no dia seguinte à publicação, de modo que não haveria como suscitar discussões jurídicas para aquele ano em questão, nomeadamente as que tivessem sobre a tutela do artigo 2º da CRP.
Deste modo, os dois novos Acórdãos do TC colocam em causa o que havia sido decidido anteriormente quanto ao subsetor do gás natural. Esse ambiente incerto apenas evidencia que apesar de um importante passo ter sido dado à frente, outros dois passos foram dados para atrás, num curto período de tempo.
Além disso, os fundamentos das decisões, ainda que tenham todo o contorno técnico, demonstram (ou pelo menos indiciam) que há uma relevante preocupação com objetivos orçamentais do Estado. Entretanto, só o facto de existirem decisões conflituantes faz com que o tema mereça aprofundamento técnico pelo TC.
Preparemo-nos para o próximo passo; afinal, os desentendimentos acerca de quem deve pagar a CESE poderão “adocicar” (ainda mais) esta já longa etapa do contencioso fiscal português, por exemplo, através do envio desta questão à Secção Plenária do TC, tendo como objetivo o de vir a produzir uma harmonização quanto ao conflituante posicionamento técnico existente (e evidente) entre diferentes Secções do TC.