Os preços de transferência (PT) e os incentivos fiscais (IF) são frequentemente apresentados como instrumentos complementares no planeamento fiscal internacional das empresas multinacionais (EMNs). Contudo, esta relação, longe de ser linear, é marcada por tensões, riscos e compromissos que se tornaram mais evidentes com a implementação do Pilar 2 do BEPS 2.0.
Os PT asseguram a correta afetação de lucros, custos e riscos entre partes/jurisdições, enquanto os IF procuram estimular investimento e competitividade. Em teoria, ambos convergem para objetivos legítimos: eficiência económica e compliance fiscal. Na prática, a implementação do Pilar 2 aumentou os riscos de dupla tributação e a complexidade do compliance, sobretudo quando as políticas de PT não estão alinhadas com os critérios de elegibilidade dos incentivos.
A tributação mínima global de 15% alterou profundamente a eficácia dos incentivos tradicionais, como isenções ou taxas reduzidas de IRC, que podem ser neutralizados por um imposto complementar. Em contrapartida, incentivos baseados em despesas – como créditos fiscais à I&D – tendem a ser mais resilientes, pois exigem substância económica real. Mas surge uma questão crítica: até que ponto as autoridades fiscais aceitarão deduções significativas sem questionar a coerência das políticas de PT?
A integração das políticas de PT nas candidaturas a incentivos é crítica para sustentar deduções ou isenções com base em resultados de plena concorrência. A ausência de alinhamento entre os critérios de elegibilidade dos incentivos e a afetação de lucros definida pelas políticas de PT pode comprometer a robustez das candidaturas. Assim, as EMNs devem reavaliar as suas estruturas operacionais e políticas de PT para garantir que a afetação de funções, ativos e riscos sustenta a elegibilidade aos incentivos e cumpre o princípio de plena concorrência e as exigências de compliance fiscal.
A OCDE prevê que o Pilar 2 aumente a receita global de IRC entre 6,5% e 8,1%, reduzindo em cerca de 80% os lucros tributados abaixo da taxa mínima de 15%. Este cenário reforça a urgência de agir. As EMNs devem implementar, sem demora, um plano estruturado que inclua: capacitação das equipas através de formação especializada, implementação de sistemas de monitorização em tempo real de alterações legislativas, integração de salvaguardas de PT nas candidaturas a incentivos (assegurando alinhamento das políticas de PT com critérios de elegibilidade e consistência entre documentação e reportes) e realização de análises de lacunas face às regras do Pilar 2.
O reforço da transparência, impulsionado pelo Country-by-Country Reporting (CbCR) e pela digitalização das autoridades fiscais, coloca as políticas de PT sob um escrutínio sem precedentes. A inclusão de informações detalhadas sobre transações intragrupo em candidaturas a incentivos pode transformar um benefício fiscal num catalisador de auditorias. Garantir a consistência entre dados reportados e políticas aplicadas tornou-se essencial para evitar ajustamentos, coimas e danos reputacionais.
A interligação entre PT e IF tornou-se, assim, mais sofisticada, exigindo estratégias proativas que conciliem a maximização dos benefícios fiscais com transparência. Num sistema fiscal global cada vez mais interligado e regulado, os PT são o referencial estratégico para a gestão eficiente do risco fiscal. A prioridade deve ser garantir substância económica, reforçar a documentação e alinhar políticas de PT com os critérios de elegibilidade dos incentivos. Caso contrário, oportunidades fiscais podem rapidamente transformar-se em riscos regulatórios e reputacionais.
