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Reembolso de despesas profissionais dos colaboradores em teletrabalho: vazio fiscal com fim à vista?

O teletrabalho veio para ficar, pelo que é fundamental regular o enquadramento fiscal a conferir ao reembolso de despesas profissionais dos colaboradores nesse regime.

O teletrabalho não é uma realidade nova, mas adquiriu uma dimensão preponderante, em Portugal, desde meados de março de 2020, com a implementação do primeiro grande período de confinamento em resposta aos desafios levantados pela pandemia da Covid-19. E embora seja expectável que, uma vez completamente ultrapassadas as atuais limitações, seja retomado o cenário de “normalidade”, com um regresso aos habituais locais de trabalho e uma retoma das práticas e costumes atualmente em stand by, o certo é que a necessidade de adaptação à realidade do trabalho remoto dotou as empresas e os trabalhadores de recursos e competências que se espera que irão redefinir os padrões de trabalho futuros, levando à criação de um “novo normal”, com tendência para a flexibilização da prestação de trabalho, a vários níveis. Em resposta a esta evolução, urge uma atualização dos regimes que, atualmente, regulam a prestação de teletrabalho.

 

O Parlamento debateu, no passado dia 5 de maio, na generalidade, vários projetos de lei para regulamentação do teletrabalho, entregues pelos partidos com assento parlamentar. As propostas apresentadas visaram várias temáticas associadas ao teletrabalho, destacando-se o pagamento de despesas, a privacidade, o direito a desligar, a garantia de igualdade de direitos e não discriminação entre trabalhadores remotos e presenciais, o reforço do caráter voluntário do regime e a proteção dos teletrabalhadores em contexto de acidentes de trabalho.

 

As propostas apresentadas parecem convergir na maioria dos temas debatidos. Não obstante, existe um (já previsível) hot topic a dividir os grupos parlamentares: o pagamento de despesas e a sua regulação. Parece existir, por um lado, consenso de que os trabalhadores não devem responder pelo acréscimo de despesas profissionais decorrente do teletrabalho, mas, por outro, divergências quanto à forma de garantir que este acréscimo é suportado pelos empregadores, sem criar espaço para interpretações abusivas ou cenários fictícios que permitam a obtenção de vantagens económicas (e talvez fiscais) ilícitas.

 

Na sequência deste debate, e face à atual discordância entre os grupos parlamentares, as iniciativas legislativas baixaram diretamente à Comissão de Trabalho e Segurança Social, sem votação, por um período de 60 dias, permanecendo, para já, em aberto para aplicação no processo legislativo.

 

Comparticipação por acréscimo de despesas profissionais – O problema em mãos

Que a deslocalização do local de trabalho para fora das instalações da empresa tem potencial para gerar um aumento das despesas profissionais suportadas pelos trabalhadores diretamente com a prestação de trabalho, parece ser uma realidade unanimemente aceite. E que os trabalhadores merecem ser reembolsados por esse acréscimo de despesas, parece ter a concordância da maioria. Como? Quando? E em que condições? É aqui que surge o problema…

 

Sucintamente, o Código do IRS define como rendimentos do trabalho dependente sujeitos a tributação, as remunerações que são obtidas pelos trabalhadores em compensação pela prestação de trabalho, nas mais variadas formas, sendo também, de forma genérica, esta a regra para a determinação da base de incidência de contribuições para a Segurança Social. Por outro lado, por regra, o Código do IRC estabelece que, na determinação do lucro tributável dos sujeitos passivos, são passíveis de dedução todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC. Ora, de um ponto de vista conceptual, parece claro que o mero reembolso de despesas profissionais incorridas pelos teletrabalhadores por conta da entidade empregadora não deve gerar tributação na esfera individual dos trabalhadores e deve configurar gasto dedutível na esfera das empresas. Contudo, na prática, não é assim tão simples, que o digam as várias empresas que, durante o período de confinamento, desenvolveram (ou tentaram desenvolver) formas de compensar os seus trabalhadores por este acréscimo de despesas profissionais em teletrabalho.

 

Para começar, surge o problema de definir qual o universo de despesas que deverão ser reembolsadas aos trabalhadores. Por um lado, existem despesas com conexão direta com a prestação de trabalho, como gastos com eletricidade, comunicações e aquisição de equipamentos de trabalho. Por outro, existe potencial para um aumento de despesas com relação indireta com a prestação de trabalho fora do estabelecimento da empresa, como, por exemplo, gastos com o consumo de água. A legislação em vigor nada define a este respeito.

 

Paralelamente, ainda que se defina concretamente o âmbito das despesas suscetíveis de serem reembolsadas, há, em muitos casos, a problemática de definir qual o valor efetivamente suportado em função da prestação de trabalho. A título de exemplo, não é, na vasta maioria dos casos, exequível exigir aos trabalhadores e/ou aos empregadores que façam uma clara alocação das despesas com eletricidade e comunicações incorridas com a prestação do trabalho, gerando-se uma arbitrariedade quase incontrolável na falta de legislação que regule a determinação de valores aceitáveis, seja através da definição de limites ou valores de referência.

 

Por último, e não descurando muitas outras questões que podem e devem ser discutidas e acauteladas a este respeito, há ainda um conjunto de limitações relacionadas com os formalismos necessários à dedutibilidade fiscal de gastos em sede de IRC que, num contexto de reembolso de despesas suportadas pelos trabalhadores, poderá não ser fácil de assegurar, salvo definição de um regime específico a este respeito. De facto, genericamente, o Código do IRC faz depender a dedutibilidade de gastos empresariais da existência de fatura ou documento equivalente emitido em nome da empresa, o que seria manifestamente impossível de operacionalizar em muitos dos casos em apreço, dado que grande uma parte substancial destes gastos são suportados no âmbito de contratos já estabelecidos entre os trabalhadores e os diversos prestadores de serviços, como sejam os contratos de fornecimento de eletricidade ou de serviços de comunicações.

 

É essencial que se desenvolva regulamentação clara e concisa, que defenda os interesses dos empregadores e dos trabalhadores

Concluindo, o aumento da preponderância do teletrabalho veio não só reafirmar a necessidade de reajustar o atual enquadramento legal, assegurando os direitos e estabelecendo os deveres dos trabalhadores e dos empregadores, mas também (re)acender a incerteza e a ambiguidade fiscal que paira sobre este tema. A legislação atual não se encontra adaptada à complexidade que subjaz à prestação de teletrabalho, deixando uma enorme margem para interpretação, seja por parte dos empregadores e dos trabalhadores, seja por parte da administração fiscal, obrigando os intervenientes a atuar num cenário de incerteza que não é do interesse de nenhuma das partes, podendo, no limite, ser um foco de futura litigância entre as partes.

 

Com o teletrabalho a assumir um papel de destaque no “novo normal” pós-pandemia, assume maior preponderância o vazio fiscal em que vivem os empregadores e os trabalhadores neste regime. Se regular esta realidade constitui um desafio manifestamente complexo, não é razoável admitir a manutenção do atual cenário de incerteza, que potencia litigância entre o fisco e os contribuintes e desencoraja as empresas de adotarem medidas para compensar, de forma justa, os trabalhadores pelo acréscimo de despesas profissionais por eles suportadas. Se os mais recentes desenvolvimentos legislativos representam uma clara declaração de intenções, pede-se ao Governo e aos grupos parlamentares que cheguem a consenso e desenvolvam uma rápida e, acima de tudo, clara resposta a estes desafios, criando legislação adaptada à complexidade do teletrabalho, que defenda os interesses dos empregadores e dos trabalhadores. Até lá, a atuação das empresas, dos trabalhadores e da administração fiscal fica regulada pela lei do bom senso, que muitas vezes não fica em terra de ninguém, como habitualmente diz o povo!

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