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O seguro morreu de acessório

Durante muitos anos a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) entendeu que a isenção prevista na alínea 28) do artigo 9.º do Código do IVA (CIVA) referente às operações de seguro e resseguro e prestações de serviços conexas apenas se aplicava desde as mesmas fossem efetuadas por agentes, corretores ou intermediários de seguro, pessoas singulares ou coletivas, que se encontrassem inscritas no Instituto de Seguros de Portugal (e.g., Informação Vinculativa n.º 4686, de 15.05.2013).

Esta disposição legal resulta da transposição do artigo 135.º, n.º 1, alínea a) da Diretiva IVA, sobre a qual o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) tem entendido que para a sua aplicação não é determinante o facto de a empresa que presta serviços desta natureza ter a “qualidade” (acrescentaria “legal”) de corretor ou intermediário. Com efeito, a aplicação da isenção em apreço dependerá antes da verificação dos seguintes critérios objetivos, os quais permitem atribuir a qualificação “operacional” de corretor ou intermediário: (i) o prestador deve estar em relação com o segurador e com o segurado (ainda que indireta) e (ii) a atividade por si realizada deve abranger os aspetos essenciais da função de intermediário de seguros, como a angariação de clientes e o estabelecimento de relações entre estes e o segurador. 

Sem prejuízo de a AT não ter, pelo menos publicamente, alterado o seu entendimento, na prática, tal parece já ter ocorrido. É o que indicia o “caso” da Rádio Popular, uma pessoa coletiva não inscrita no Instituto de Seguros de Portugal, que, na qualidade de intermediário de seguros, vende aos seus clientes extensões de garantia sobre os bens que comercializa. Ora, a Rádio Popular não hesitou em qualificar a extensão de garantia como uma operação isenta, ao abrigo da alínea 28) do artigo 9.º do CIVA. A AT viu, analisou, não contestou a qualificação da extensão da garantia como uma operação de seguros isenta de IVA ao abrigo da alínea 28) do artigo 9.º do CIVA, mas contestou a qualificação desta operação como sendo financeira e, consequentemente, passível de ser considerada acessória (sendo que, ainda assim, considerou que a mesma, face aos elementos analisados, nunca seria acessória). Em termos práticos, a AT entendeu que a Rádio Popular não poderia deixar de sofrer limitações no exercício do direito à dedução decorrentes de uma atividade mista, ou seja, uma atividade que confere direito à dedução (no caso, a venda, sujeita a IVA, de aparelhos eletrodomésticos e de outros artigos de informática e de telecomunicações, a qual corresponde à atividade principal da Rádio Popular) e uma atividade que não confere esse direito (a venda, isenta de IVA, de extensões de garantia). Limitações estas que não podem ser extintas pelo carácter acessório que a venda das extensões de garantia possa ter em relação à atividade principal de venda de aparelhos eletrodomésticos e de outros artigos de informática e de telecomunicações. Isto porque, de acordo com a AT, as extensões de garantias são seguros e, como tal, não qualificam como operações financeiras, essas sim passíveis de serem consideradas operações acessórias e, nessa medida, excluídas do denominador da fração utilizada no cálculo do pro-rata, em conformidade com o n.º 5 do artigo 23.º do CIVA. Assim, a AT liquidou adicionalmente o valor IVA que entendeu ter sido indevidamente deduzido pela Rádio Popular com a aquisição de bens e serviços de utilização mista, o qual sempre foi deduzido na sua totalidade, precisamente com base no argumento do carácter acessório da venda isenta das extensões de garantia face à atividade tributada. 

Sem entrar em detalhes sobre os critérios para determinar a acessoriedade de uma operação financeira em relação à atividade principal – até porque essa não é a verdadeira problemática do tema, ainda que a AT tivesse considerado que as extensões de garantia são um prolongamento da atividade da Rádio Popular e que, por essa razão, nunca seriam acessórias – vejamos, muito resumidamente como é que o TJUE (no acórdão C-695/19) veio legitimar o entendimento, preconizado pela AT, de que os seguros não qualificam como operações financeiras e, como tal, não são suscetíveis de serem considerados acessórios para efeitos da sua exclusão do cálculo do pro-rata. 

De facto, a Rádio Popular, tendo contestado junto do tribunal arbitral a legalidade das liquidações adicionais de que foi alvo, levou a que este tribunal suscitasse, mediante o reenvio prejudicial para o TJUE, o esclarecimento sobre se as operações de intermediação na venda de extensões de garantia efetuadas por um sujeito passivo, cuja atividade principal consiste na venda de aparelhos eletrodomésticos e de outros artigos de informática e de telecomunicações, podem ser excluídas do denominador da fração utilizada no cálculo do pro-rata (ao abrigo do artigo 174.º, n.º 2, alíneas b) e c) da Diretiva IVA, transposto para o  n.º 5 do artigo 23.º do CIVA), quando as mesmas sejam consideradas acessórias. Ora, TJUE considerou que as extensões de garantia prestadas pela Rádio Popular qualificam como operações de seguro isentas de IVA (de acordo com o artigo 135.º, n.º 1 alínea a) Diretiva IVA, transposto para a alínea 28) do artigo 9.º do CIVA), porém, entendeu que as mesmas não estão excluídas do cálculo do pro-rata porque não qualificam como “operações financeiras acessórias”, em resultado de (i) uma ausência de remissão pela regra de exclusão do cálculo do pro-rata para as operações de seguros (ou seja, ausência de remissão pelo artigo 174.º, n.º 2, alínea c) para o artigo 135.º, n.º 1, alínea a), ambos da Diretiva IVA) e de (ii) uma interpretação estrita dos conceitos previstos nas regras de isenção, particularmente contidas no artigo 135.º da Diretiva IVA.

Posto isto, conclui-se que a acessoriedade “irrelevante” da atividade seguradora é aquela que necessariamente corrói a neutralidade do IVA. Este será um caso, como muitos, em que a acessoriedade medindo-se por ser “pequena”, avalia-se como “grande” no impacto das consequências que gera!

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