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O Rossio na Rua da Betesga: sobre o novo regime de restituição do IVA na organização de eventos

Enquanto medida prevista no Programa de Estabilização Económica e Social (PEES), o Governo, através do Decreto-Lei n.º 54/2020, de 11 de agosto, aprovou um benefício concedido aos organizadores de congressos, feiras, exposições, seminários, conferências e similares, que consiste na restituição do montante equivalente ao imposto sobre o valor acrescentado (IVA) suportado e não dedutível com as despesas relativas à organização daqueles eventos, bem como o respetivo procedimento de restituição.

As despesas em questão reportam-se a (i) transportes e viagens de negócios do sujeito passivo e do seu pessoal, incluindo as portagens; (ii) alojamento, alimentação e bebidas; (iii) despesas de receção, incluindo as relativas ao acolhimento de pessoas estranhas à empresa; assim como (iv) despesas relativas a imóveis ou parte de imóveis e seu equipamento, destinados principalmente a tais receções.

Tais despesas, cumpre salientar, eram já dedutíveis na proporção de 50%, quando, nos termos do disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 21.º do Código do IVA, (i) fossem efetuadas para as necessidades diretas dos participantes, (ii) resultassem de contratos celebrados diretamente com o prestador de serviços ou através de entidades legalmente habilitadas para o efeito e (iii) comprovadamente contribuíssem para a realização de operações tributáveis – requisitos que permanecem aplicáveis no novo regime em causa. No entanto, pretende-se com o regime em apreço alargar a restituição do IVA aos restantes 50% do IVA suportado e não dedutível nos termos do respetivo Código.

Conforme se sublinha no preâmbulo do decreto-lei em questão, a atividade de organização de eventos assume um peso crescente na economia nacional, carecendo de medidas de dinamização económica do emprego, tendentes a absorver algum do impacto da crise económica provocada pela pandemia.

A constatação não é, porém, nova. Apesar de vários impulsos da parte da Comissão Europeia, nunca chegou a ser atingido o consenso necessário a nível europeu para se proceder a uma harmonização das limitações do direito à dedução do IVA. Portugal, por seu turno, é o segundo país da União Europeia que tem vindo a manter uma política fiscal altamente restritiva, em particular, no que respeita ao chamado turismo de negócios – apenas a Grécia consegue ser ainda menos competitiva.

Nesse âmbito, já em 1998, a Comissão dos Assuntos Económicos e Monetários e da Política Industrial junto do Parlamento Europeu referia que o turismo de negócios (reuniões, congressos, viagens de negócios) assumia uma importância simultaneamente económica e social, pelo que, nos Estados-Membros que excluem ou limitam a dedutibilidade do IVA, a oferta no referido setor padece de uma insuportável diferença em termos de concorrência, “na medida em que soluções diferentes significariam penalizar uma já forte, mas potencialmente grande, componente do turismo que pode reequilibrar economias locais, garantindo desenvolvimento e emprego de forma continuada (não apenas sazonal), direta e induzida.”

A medida em questão, não obstante ser de aplaudir, suscita várias questões de ordem prática. Desde logo, sendo limitada às entidades com o CAE principal «82300 - Organização de feiras, congressos e outros eventos similares», apresenta uma técnica legislativa duvidosa se se aceitar que o sistema comum do IVA não discrimina cadeias de valor. Assim, desde logo, o regime cria desigualdades entre entidades com o referido CAE principal, outras entidades com o mesmo CAE secundário e ainda aquelas que, não recorrendo ao outsourcing, decidem elas próprias organizar o evento. Por outro lado, a medida é propícia a um incremento artificial da burocracia inerente à alteração do objeto social com o único propósito de refletir o CAE 82300 como o principal da empresa: apenas para que esta não fique numa posição de desigualdade face a outros potenciais beneficiários. Por último, a seletividade em função do CAE é também passível de suscitar questões em matéria de auxílios de Estado.

Em segundo lugar, a gestão e o controlo do benefício em causa são atribuídos ao Turismo de Portugal, I.P.. Não obstante este instituto público ter comprovada experiência na gestão de tributos, dificilmente se compreenderá a opção: sobretudo quando este organismo fica a depender da Autoridade Tributária e Aduaneira na recolha de informação essencial à verificação dos requisitos de aplicação do próprio regime aos potenciais beneficiários. Noutro prisma, poder-se-ia inferir que a opção em causa teve como propósito subtrair a competência judicial ao Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) – uma vez que o Turismo de Portugal, I.P. não se encontra abrangido pela Portaria de vinculação –, como forma de dissuadir eventual controvérsia que o novo regime possa originar. Isto porque o artigo 21.º do Código do IVA (ao qual se encontra efetivamente associado o regime em causa) tem vindo a ser, ultimamente, alvo de discórdia junto daquela instância judicial.

Em terceiro lugar, também não se afigura claro se o benefício em causa se assume temporário ou definitivo. Por um lado, no n.º 4 do artigo 6.º, refere-se que o montante global máximo dos pagamentos a efetuar a título de restituição do IVA tem o limite de 6 milhões de euros. Por outro lado, o n.º 2 do mesmo artigo determina que as dotações necessárias para a aplicação em despesa das restituições autorizadas são anualmente transferidas do orçamento do subsetor Estado para o Turismo de Portugal, I. P..

Em todo o caso, o Tribunal de Justiça da União Europeia, nos casos Comissão vs. França (C-345/99 e C-40/00) e Danfoss AstraZeneca (C-371/07), declarou que os Estados-Membros não estão autorizados a alargar o âmbito das limitações específicas ao direito à dedução (como as previstas no artigo 21.º do Código do IVA). Apenas se encontram legitimados a restringir progressivamente o escopo dessas limitações de forma a favorecer o direito à dedução, enquanto regime-regra do sistema comum do IVA. De acordo com esta linha jurisprudencial, o benefício em causa deverá ter caráter definitivo, extravasando o contexto do PEES – ainda que limitado a um cabimento anual de 6 milhões de euros. A ser outro o caso, é expectável que a medida seja geradora de dissenso.

Relativamente aos organizadores de eventos, com base em dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), estima-se para o CAE 82300 um volume de negócios anual superior a 400 milhões de euros. Trata-se, aliás, de um setor que tem vindo a aumentar a sua faturação em cerca de 50 milhões de euros por ano no último quinquénio. Todavia, assumindo o amplo segmento do alojamento, restauração e similares como o principal fornecedor dos organizadores de eventos e admitindo até uma taxa de IVA correspondente a 23%, o benefício em causa, limitado aos 6 milhões de euros de reembolso, teria por efeito libertar cerca de 26 milhões de euros do ónus do imposto – pense-se que, na vizinha Espanha, não existem tais restrições ao direito à dedução. Ora, tendo em conta que o referido segmento do alojamento, restauração e similares apresentava, de acordo com o INE, um volume de negócios de cerca de 15 mil milhões de euros em 2018, o incentivo em causa representará cerca de 0,17% desse valor.

Em suma – a não ser que se trate de um regime-piloto que visa estudar o impacto macroeconómico tendente a uma eventual eliminação da restrição específica do direito à dedução num setor tão estratégico para o país –, o Governo optou por apresentar uma pequena solução para um grande problema. É dizer: optou por meter o Rossio na Rua da Betesga.

 

O presente texto baseia-se na informação disponível até 28 de setembro de 2020.

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