Skip to main content

O novo paradigma do home office: algumas considerações ao nível fiscal

A generalização do home office pode potencialmente mudar a residência fiscal dos trabalhadores e criar estabelecimentos estáveis para as empresas.

No dia 18 de março, foi decretado o estado de emergência em Portugal devido à propagação do coronavírus (através do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020). Com a aprovação deste documento, suspendeu-se o exercício do direito e liberdade de deslocação e fixação em qualquer parte do território nacional, e atribuiu-se às autoridades públicas os poderes necessários para aplicar as restrições consideradas adequadas à redução do contágio, nomeadamente, o confinamento de cidadãos no respetivo domicílio.

Em resultado destas restrições à liberdade de deslocação e, bem assim, o facto de grande parte das empresas ainda manterem, por tempo indefinido, os seus escritórios encerrados, verificou-se que muitos trabalhadores optaram por desenvolver as suas atividades profissionais remotamente, a partir de outros países (e.g., no casos de emigrantes portugueses, a partir dos seus países de origem), fazendo das suas casas o seu novo local de trabalho – home office.

Esta situação imprevista pode vir a causar um certo embaraço na aplicação de algumas normas tributárias de natureza doméstica, mas também de cariz internacional, como é o caso do vulgarmente designado estabelecimento estável ou dos critérios de residência fiscal. Tal facto ocorre não só, tal como referido anteriormente, ao nível doméstico no Código do IRC (“CIRC”), bem como no plano do direito fiscal internacional no âmbito das Convenções para evitar a Dupla Tributação (“CDT”).

Em termos genéricos e sucintos, um estabelecimento estável consiste (i) numa instalação fixa através da qual seja exercida uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola ou (ii) nos casos em que uma pessoa, com carácter de dependência comercial e funcional, atue em território português por conta de uma empresa  tenha, e habitualmente exerça, poderes de intermediação e de conclusão de contratos que vinculem a empresa, no âmbito das atividades por esta exercidas.

Esta definição é semelhante à noção de estabelecimento estável que vem consagrada na maioria das CDT’s celebradas por Portugal com outros países e que seguem de perto a Convenção Modelo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (“CMOCDE”).

Para ilustrar este conceito e a sua aplicabilidade no âmbito do tema sob análise, pense-se no caso de um Arquiteto português que trabalha para um atelier de arquitetura sediado no Reino Unido. Devido ao contexto de pandemia, este Arquiteto regressa a Portugal para trabalhar em regime de home office, em face da prescindibilidade de frequentar o atelier (i.e., instalações fisicas da empresa para a qual trabalha) até 2021.

Neste caso hipotético, pode a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) considerar que existe um estabelecimento estável dessa empresa britânica em Portugal e considerar que parte do rendimento gerado pelo Arquiteto português para o seu empregador deverá ser sujeito a tributação em Portugal? Em relação ao Arquiteto português, se cumpridos os respetivos requisitos, pode este ser considerado residente, para efeitos fiscais, em Portugal (e não no Reino Unido onde residia) sujeitando-se às correspondentes obrigações tributárias em Portugal?

Segundo um recente parecer da OCDE (Secretariat analysis of tax treaties and the impact of the COVID-19 crisis ) , sem carácter vinculativo, a excecional e temporária deslocalização do local de trabalho para um home office na sequência do contexto de pandemia não deverá ser, per se, causa suficiente para a constituição de um estabelecimento estável num outro país na medida em que este carece de um certo grau de permanência num território e deve estar à disposição da empresa.

De acordo com a argumentação da OCDE,  ainda que parte do negócio de uma empresa seja desenvolvido em regime de home office, por um trabalhador desta, esta situação não é suficiente para se concluir que o escritório do trabalhador está à disposição da empresa. De facto, essa situação só se verificaria se o trabalhador usasse continuamente o escritório de casa para desenvolver uma atividade da empresa e nesse caso, usualmente, a última teria de acordar com o trabalhador essa situação.

Além disso, em certas situações, a OCDE argumenta que pode não existir qualquer alternativa para o trabalhador devido a um impedimento legal de deslocação. Neste caso, se o impedimento cessar e o trabalhador se deslocar para o país em que o escritório da sua empresa está situado, não se verificaria uma das características essenciais de um estabelecimento estável: um certo grau de permanência no território.

Em relação à questão da mudança de residência fiscal, é possível que devido à pandemia um trabalhador esteja retido (ainda que voluntariamente) num país distinto daquele em que está situada a sua entidade patronal e, como tal, possa vir a ser considerado residente fiscal num estado que não o da sua residência habitual.

Também relativamente a este tema a  OCDE opina no sentido de que a residência dos trabalhadores dificilmente se alterará devido à pandemia uma vez que as “tie-breaker rules” (regras de “desempate”) previstas no CDT permitirão dirimir estes conflitos de forma razoável, mantendo a residência (na grande maioria dos casos) no país onde habitualmente o trabalhador é residente (no nosso caso do Arquiteto, no Reino Unido) pois aí se encontra o seu centro de interesses vitais (ainda que temporariamente esteja a residir num país diferente).

Importa dar nota que estas recomendações da OCDE não revestem caráter vinculativo e, como tal, as autoridades fiscais dos diferentes países não estão obrigadas a acolher tais recomendações. Com efeito, a Autoridade Tributária espanhola já se debruçou sobre um caso de cidadãos do Líbano que estiveram retidos em Espanha devido às restrições de deslocação impostas para evitar a propagação do coronavírus.

Neste caso, a Autoridade Tributária espanhola considerou que os dias passados em Espanha, ainda que devido a estas circunstâncias excecionais, seriam considerados no cômputo dos dias necessários para estes cidadãos libaneses se tornarem residentes fiscais em território espanhol, de acordo com a norma interna. O facto de não existir uma CDT em vigor entre Espanha e o Líbano, não permitiu que fossem aplicadas as regras de desempate acima referidas e, portanto, gerou-se um conflito de residência fiscal onde ambos os países consideravam que o cidadão em causa devesse ter residência fiscal no respetivo Estado. No caso vertente, o que se verificou foi que a Autoridade Tributária espanhola não atribuiu qualquer relevância ao atual contexto mundial de pandemia e seguiu as regras de residência de forma literal aplicadas num contexto de normalidade e sem atender à natureza excecional inerente à situação, não tendo igualmente atendido às recomendações veiculadas pela OCDE.

Em Portugal, a AT ainda não emitiu quaisquer diretrizes sobre este assunto, no entanto, o mesmo deverá ser monitorizado de forma atenta por parte das empresas e dos seus colaboradores. O risco de existência de implicações fiscais adversas será, naturalmente, maior no caso em que estejam em causa dois países que não tenham uma CDT em vigor que permita dirimir eventuais conflitos. É importante estar atento a este tema uma vez que os seus efeitos práticos apenas irão ocorrer nos anos de 2021 e seguintes (v.g., com a entrega da declaração de IRS relativa ao ano de 2020).

Se tem interesse em receber comunicação da EY Portugal (Convites, Newsletters, Estudos, etc), por favor

clique aqui

Secções