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O Novo Contrato Social Fiscal

A digitalização, a globalização e os novos sistemas de disseminação de informação em rede alteraram significativamente os fundamentos tradicionais do contrato social.

A vida em sociedade pressupõe um equilíbrio permanente entre as prestações estatais, traduzidas financeiramente na despesa pública geradora de utilidade social e as contribuições privadas, traduzidas financeiramente na receita fiscal, causadora de desutilidade privada. O elemento chave para o equilíbrio virtuoso desta equação é a concretização de um resultado positivo em sede de utilidade social global, ou seja, que as prestações públicas agregadas mais do que compensem os custos decorrentes da sua cobrança. Este modelo civilizacional remonta à Magna Carta, de 1215, e foi traduzido, em meados do século XVIII, no brocardo “no taxation without representation”, segundo o qual este jogo de equilíbrios necessita de ser legitimado e sufragado pelos alvos da pretensão impositiva pública, autorizando o exercício da mesma na ablação da esfera patrimonial privada.

Os impostos são, portanto, o “preço da civilização”. E esse “preço” é determinado anualmente, por via parlamentar, através da votação dos representantes dos destinatários do encargo, que aprovam novos impostos, e autorizam o lançamento dos existentes por via da aprovação do Orçamento do Estado. Este modelo contratualista de intermediação (Hobbes, Locke e Rousseau) está a ser colocado em causa. Efetivamente, os novos modelos económico-sociais assentam precisamente na tendência inelutável para a desintermediação. Se essa realidade é claramente visível no setor privado, também se faz sentir na esfera pública. O movimento de descentralização é uma clara manifestação virtuosa desta tendência, visando a aproximar a decisão pública aos destinatários da mesma.

Porém, existem outros exemplos não virtuosos. Relembramos que o imposto, como a própria denominação indica, traduz-se numa imposição ablativa de um ativo privado. Os mecanismos básicos de auto-defesa estarão sempre presentes.  Assim, qualquer intenção populista assente num “ataque aos impostos” terá sempre um público ávido. A justificação para a pretensa ilegitimidade do imposto passará sempre pelo argumento da não perceção da utilidade da despesa pública realizada, usando o argumento opaco da “corrupção”, sempre enunciado mas nunca concretizado (o caso dos “coletes amarelos”), ou da aplicação do produto dos mesmos em benefício de um qualquer outro grupo não merecedor (movimentos secessionistas). Esta justificação assenta sempre no binómio enviesado nós versus eles, em que o grupo de reivindicação é constituído de forma aparentemente inorgânica, por via de redes sociais, aparentemente espontâneas, mas que são funcionalizadas no sentido da criação de um grupo injustiçado, que por alguma razão, é alegadamente mal tratado pelo grupo dominante.

Este estado de coisas é um desafio aos modelos tradicionais de organização do Estado. Um dos princípios que é colocado em causa de forma imediata é o princípio da igualdade. No limite, e se levarmos as revindicações grupais ao ponto extremo, o grupo pretensamente contribuidor nunca acederá em contribuir para o grupo subsidiado. Ora, se a função pública de garantia da igualdade for colocada em causa, então já pouco restará para o Estado, já que os pilares da justiça e da segurança ruirão catastroficamente.

Infelizmente, esta criação não virtuosa de grupos é igualmente promovida pela recente política fiscal.  O sistema tributário português encontra-se em mutação. Todos os anos aparecem novos tributos, com diferentes configurações, abrangendo realidades múltiplas, na maior parte das vezes sem qualquer conexão com os impostos “normais”. Este modelo tributário decorre:

 

a) Das próprias limitações genéticas do sistema fiscal tradicional face à nova realidade global:

                - que se encontra esgotado em termos de possibilidade de progressão das taxas de tributação (por isso aparecem tributos com denominações diferenciadas mas que constituem efetivamente agravamentos de impostos tradicionais – v.g. derrama estadual no caso do IRC; sobretaxa do IRS; AIMI em sede de tributação imobiliária);

                - que tenta criar fluxos de receita estáveis criando tipos tributários anómalos, sucessivamente agravados (v.g. tributação autónoma; limites à dedutibilidade dos encargos de financiamento; limites ao reporte de prejuízos, etc.);

                - que tenta contornar as limitações dos modelos de conexão do direito fiscal internacional, tentando manter o poder de tributar no país de destino em atividades incorpóreas (v.g. impostos sobre as plataformas digitais; “taxas turísticas”);

                - pela sucessivamente crescente função reguladora do Estado, que deixando de atuar ao nível do fornecimento direto das utilidades, impõe obrigações de “serviço público” adicionais sem a necessária fundamentação económico-financeira (v.g., o caso da tarifa social da energia, ou de todas as limitações à progressão tarifária no sector dos transportes e afins), ou pela criação de impostos regulatórios putativamente perequativos, mas que disfarçam pretensões eminentemente tributárias (a perequação tarifária não fundamentada);

 

b) De estratégias comportamentais legitimadoras de pretensões tributárias maximizadas

                 - pela utilização da vertente “sinalagmática” para a legitimação de tributações agressivas utilizando abusivamente o modelo de contribuição ou taxa (v.g. vários tributos ambientais, a “taxa da proteção civil”, etc.);

                - pelo abuso da qualificação “extraordinária” para a justificação de imposição de sobrecargas supostamente temporárias, mas que tendem fatalmente para a permanência, cristalizando-se ao longo do tempo (v.g. todas as denominadas “Contribuições Extraordinárias”), tendendo o Tribunal Constitucional a “desmantelar” os cortes extraordinários de despesa (por exemplo, os cortes aos vencimentos dos funcionários públicos) e a aceitar a manutenção dos tributos (v..g. CESE);

                - pela incapacidade do Ministério das Finanças na gestão impositiva de uma política fiscal racional. Os ministérios setoriais tomaram a imposição fiscal positiva como elemento essencial da política setorial, deixando pouco espaço para o estabelecimento de limitações a iniciativas mais criativas (o que não acontecia no caso do modelo anterior, onde os ministérios setoriais propunham benefícios fiscais que eram controlados pelo efeito em sede de despesa fiscal pelo Ministério das Finanças)

                - pela descentralização crescente de competências para entidades menores, que não sendo acompanhadas de “envelopes financeiros” suficientes, legitima a sucessiva criação de novas taxas municipais.

 

c) De orientações políticas limitadoras de reações de “resistência fiscal” por via da criação de grupos-alvo de tributação acrescida:

- pela utilização de anátemas tradicionais de tributação do pecado (por exemplo tabaco, bebidas alcoólicas, e mais recentemente a tributação das bebidas açucaradas), que, se abusada, destrói o próprio princípio de arrecadação de receita fiscal;

- pela criação de ambientes agressivos contra setores em concreto, aproveitando estereótipos socialmente instalados para a justificação de uma sobrecarga tributária. Esta “sectorização” tributária baseada em argumentos tais como os “lucros excessivos” (v.g. CESE, Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica, Taxa de Segurança Alimentar +), ou “especulação imobiliária” (v.g. AIMI), ou a diabolização de produções, como o eucalipto (a nova taxa sobre recursos florestais do OE/2019) criando uma luta interna nos setores (por exemplo, na CESE, elétricas vs. petrolíferas vs. renováveis; Contribuição Farmacêutica (hospitalar vs. ambulatório, medicamentos patenteados vs. genéricos);

- pela privatização excessiva de uma função pública, privatizando-se uma função que tipicamente se insere na atividade pública. Um desses casos, ainda em tendência crescente, é a Compensação Equitativa pela Cópia Privada, pela qual o Estado atribui poder a associações agregadoras de interesses na área da cultura, concedendo “poder tributário” a instituições privadas que o usam para a celebração de “acordos” tutelados pelo poder do Estado.

                 

Este último grupo de orientações políticas é particularmente nocivo, uma vez que assenta predominantemente num modelo de “ditadura da maioria sobre a minoria”. Apesar dessas “maiorias” e “minorias” revestirem uma natureza móvel e fluída, a verdade é que esta tributação “clusterizada” sectária viola os princípios mais basilares do modelo democrático representativo, uma vez que não permite uma tutela efetiva da posição tributária do grupo-alvo, inevitavelmente em minoria no seio de uma democracia parlamentar. O princípio da legalidade fiscal, por conseguinte, não é suficiente para a tutela dos seus direitos constitucionais. Neste quadro complexo, as análises de conformidade constitucional terão de ultrapassar a simples análise formal de legalidade, observando outras condicionantes de ordem material (proporcionalidade, tempestividade, generalidade, liberdade económica, eficiência, entre outros) de forma a que os grupos-alvo possam ver a sua posição jurídica salvaguardada de uma forma minimamente satisfatória.

Este é um imperativo, e igualmente, uma consequência deste novo contrato social fiscal. Esta tendência para a criação de antagonismos grupais deve ser anulada através de uma política de transparência, justiça e igualdade. A legalidade, em si mesmo, já não é suficiente, por si só, para o efeito.  Tal como a exigência na gestão pública aumentou exponencialmente por via de uma maior exigência por parte dos destinatários da mesma, também os imperativos éticos, de justiça, proporcionalidade e igualdade na definição da política fiscal devem ser respeitados e ampliados. Nesta perspetiva, e nos termos do novo contrato social fiscal, o contribuinte deve ser, assim, um bom contribuinte, pagando os seus impostos e o Estado deve fazer bons impostos, transparentes, eficientes, justos e proporcionais, sem a criação de anátemas ou injustiças relativas, promovendo a paz social e o desenvolvimento sócio-económico.

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