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O Imposto do Selo e as Contribuições

Quem diria que as figuras tributárias mais ancestrais do nosso sistema fiscal seriam aquelas que mais desenvolvimento tiveram nos últimos anos?

Os resultados do survey isso confirmam. E, curiosamente, todos estes tributos (mesmo o Imposto do Selo) começaram por ser impostos temporários ou extraordinários, mantendo-se indefinidamente. O Imposto do Selo é um claro exemplo: foi criado por Alvará Régio em 24 de dezembro de 1660 (ótima prenda de Natal!), para suprir temporariamente uma falta de receita pública, e mantém-se até hoje. Podemos, assim, afirmar com alguma propriedade que nada é mais permanente em Portugal do que um imposto extraordinário. 

A capacidade de mutação destes tributos justifica a sua longevidade.

O imposto do selo conseguiu transfigurar-se: de imposto baseado na formalidade e na aposição de fé pública ancestral, passou a incidir sobre temas da modernidade. O grande problema a este respeito é a eficiência e o papel do Estado. Anteriormente o Estado outorgava a sua proteção autoritária àquele documento ou operação em troca de um pagamento “de tutela” tendo em vista a garantia da fluidez e segurança no tráfego jurídico e económico.

Hoje em dia, essa justificação tutelar não encontra suporte, já que a função do Estado se transmutou para a área da simples regulação e da garantia da eficiência do mercado, onde a função principal é a eliminação de obstáculos à fluidez do mercado, corrigindo falhas de mercado. Ora, neste jogo exigente, as falhas de política são inadmissíveis, bem como impostos ineficientes. Isso coloca uma pressão adicional sobre o imposto do selo.

A sua causa deve ser bem fundamentada, já que a sua legitimidade só se baseia na função da garantia de redistribuição, ou seja, do princípio da igualdade. Assim, a única função atual do Imposto do Selo é a angariação de receita pública para o financiamento das prestações públicas. Porém, essa função reditícia não pode implicar a criação de obstáculos desproporcionados ao mercado ou de desigualdades relativas entre modelos de negócio equivalentes.

E os resultados do survey isso comprovam. 96% dos inquiridos (de longe a opinião mais unânime de todas as questões) solicitaram a isenção de Imposto do Selo em operações de gestão centralizada de tesouraria intra-grupo, como por exemplo, o cash-pooling. São claras as razões desta unanimidade: a gestão de tesouraria é uma função essencial em sede de eficiência de gestão interna de um grupo empresarial sendo pouco justificável uma ingerência tributária no seu seio, ainda mais quando o devedor e o credor são, invariavelmente, o mesmo sujeito económico. De facto, uma coisa é um benefício externo decorrente de um crédito concedido, onde o imposto do selo aparece oportunisticamente para capturar parte desse goodwill, outra coisa é uma presença permanente – irritante – em todos os momentos de uma função de gestão interna, que se pretende o mais eficiente e neutra possível.

A mesma crise de legitimidade se verifica ao nível da incidência de Imposto do Selo nas aquisições de imóveis e nas operações de trespasse, embora por razões distintas. No caso das transmissões de imóveis (92% dos inquiridos defendem a eliminação desta incidência), a razão é a tributação cumulativa com o IMT. Aqui, na nossa opinião pessoa, o problema reside mais no IMT do que no Imposto do Selo. Ambos funcionam como impostos de registo: o selo para a garantia da proteção notarial e registral de longo prazo; o IMT para a criação do cadastro (atualmente ainda inexistente). Ora, se nada for feito em sede de reflexividade em sede de IMT, a sua legitimidade é nula (relembre-se a sua qualificação como “imposto mais estúpido do Mundo”), o que afeta reflexivamente o Imposto do Selo. No caso dos trespasses (84% de opiniões desfavoráveis), a questão é diversa. A sua incidência original era simplesmente justificada também pelo goodwill (aqui também no sentido estrito do termo) que era transmitido no momento da transmissão de arrendamentos comerciais. Porém, e isto demonstra mais uma vez a incrível capacidade de mutação do Imposto do Selo, quando esse regime foi destruído pela alteração do novo regime de arrendamento, a Administração Fiscal tratou de estender este conceito para fronteiras onde o legislador (e a própria Administração Fiscal no seu entendimento original) não ousava sequer observar no momento inicial. Ora, essa extensão incomportável tem como consequência inevitável a criação de obstáculos excessivo, e consequentemente, o fim da legitimidade desta verba enquanto tipo tributário equilibrado na angariação de receita pública.

Em sentido inverso, e isto prova a credibilidade da amostra e consequentemente dos resultados, a maioria dos inquiridos (54%) concorda com o aumento da taxa do imposto do selo sobre o crédito ao consumo e redução para crédito ao investimento.  Esta questão prova a sensibilidade dos contribuintes à função regulatória do imposto do selo, e a necessidade de se proceder a uma reforma integral do modelo, tendo em vista a manutenção da sua legitimidade.

No caso das Contribuições, a tendência é similar. No momento em que desaparecem da própria designação da DGCI (que passou a chamar-se, em 1997, Direção Geral dos Impostos, retirando-se o C das Contribuições), tenderam a multiplicar-se um pouco por todo o lado. Tal resultou da emergência do princípio da equivalência ou do benefício, impulsionada pelo crescimento da função reguladora do Estado. Não é por acaso que a AT, quando aparece, se denomina como “Tributária”, alargando o perímetro de figuras em sua alçada.

Ainda assim, 58% dos inquiridos afirmam ser necessária uma revisão de fundo (24%) ou existirem aspetos significativos a melhorar (34%) no campo das contribuições extraordinárias. Ora, se estas contribuições têm como fundamento a inclusão de eficiência no mercado (internalizado externalidades negativas ou socializando externalidade positivas), como se justifica esta opinião maioritária?

Nos últimos anos temos assistido a uma proliferação de “contribuições”, num modelo quase anárquico e insuficientemente fundamentado, sem que, para o efeito, existisse uma doutrina sólida relativamente aos termos qualitativos e quantitativos dos seus requisitos essenciais.

Sem uma doutrina sólida de referência, o legislador não tem referências para a definição de uma política eficiente e justa neste campo. E isso é particularmente importante pois, normalmente, a definição dos elementos essenciais destes tributos é efetuada por organismos sectoriais, muitas vezes com reduzida intervenção do Ministério das Finanças, o que impede, o desenvolvimento de uma ação reguladora a este aspeto.

De facto, esta estratégia tem diversos problemas: em primeiro lugar, a proliferação desenfreada de tributos e para-tributos impede uma efetiva avaliação da carga tributária dos sujeitos passivos; por outro lado, a lógica subjacente à exigência de um princípio de generalidade dos tributos é sucessivamente mais afetada, sem que exista uma justificação coerente entre as exceções e a incidência. Senão vejamos, e somente a título de exemplo: contribuição extraordinária sobre o sector energético; contribuição sobre o sector bancário, contribuição extraordinária sobre o sector farmacêutico; contribuição para a ERC; taxa de segurança alimentar; taxa de turismo; contribuição para a proteção civil, entre outras. A principal critica que se faz a esta função criativa é a seguinte: ao contrário do que o legislador entende, a exigência arquitetónica para a correta configuração constitucional de tributos desta índole é extraordinariamente exigente. Ao invés, verificamos um relativo laxismo técnico assente no pressuposto – errado – segundo o qual estes tributos seriam de configuração mais simplificada que os impostos tradicionais. Nada mais errado: a partir do momento em que a teleologia subjacente assenta numa oneração de determinados sectores por via da internalização de riscos especiais ou de privilégios históricos “injustificados”, a exigência técnica de modelação do esforço tributário exigido aumenta exponencialmente: a causa do tributo não é unicamente assente num dever unilateral de contribuir, mas numa relação tributária reflexa que deve ser calibrada no lado ativo e passivo. Estas são questões que merecem uma reflexão mais cuidado uma vez que o Tribunal Constitucional tem (e bem) sido bastante exigente e abrangente na configuração tributária de realidades anómalas, abarcando para a área fiscal realidades que tentavam fugir (como é o caso da compensação equitativa pela cópia privada) ou que tradicionalmente se encontravam fora do próprio âmbito da receita do Estado (como foi o caso do corte da pensões) configurando cortes de despesa como verdadeiras medidas fiscais.

Assim, um tributo que se legitima conceptualmente como “corretor de mercado” pode muito facilmente transformar-se num “distorsor de mercado”. Por vezes, o legislador, consciente deste forçar, denomina as contribuições de “extraordinárias”. Porém, como o Imposto do Selo, elas tendem a manter-se, e até mesmo a reforçar-se. Ora, os resultados do survey demonstram que os contribuintes estão atentos e que é importante que o legislador repense estes modelos tributários a bem da competitividade do país e da legitimidade do nosso sistema tributário.

 

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