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IRS - Valor de aquisição de bens mobiliários a título gratuito: Ligou-se o “complicómetro”

A alteração da determinação do valor de aquisição de valores mobiliários doados, em sede de IRS, levanta questões acerca dos seus reais impactos e da sua relevância no combate ao planeamento fiscal abusivo.

Num quadro de instabilidade económica e social, o Orçamento do Estado para 2022 (“OE 2022”) não trouxe, regra geral, grandes novidades legislativas em sede de impostos, dando seguimento a uma boa parte das medidas que haviam sido introduzidas na proposta orçamental inicial, que viria a ser chumbada.

Contudo, existe uma medida que tem passado algo despercebida e que poderá ter um impacto significativo na organização societária dos grupos familiares em Portugal – a alteração da determinação do valor de aquisição dos valores mobiliários transmitidos no âmbito de doações isentas nos termos do Código do Imposto do Selo (como é o caso das doações entre cônjuges ou unidos de facto, descentes e ascendentes).

Sucintamente, com a entrada em vigor do OE 2022, para efeitos do apuramento ganhos sujeitos a IRS derivados da transmissão de valores mobiliários adquiridos por doações isentas de Imposto do Selo – nos termos da alínea e) do artigo 6.º do Código do Imposto do Selo –, o Código do IRS passa a determinar que o valor da aquisição a considerar para este efeito deverá corresponder ao valor que serviria de base à liquidação do Imposto do Selo, caso este fosse devido, até aos dois anos anteriores à doação, ao invés do valor à data da transmissão.

Na sua génese, a alteração em questão representa nada mais do que um alargamento da norma anti abuso já aplicável há vários anos à doação de bens imóveis, a qual tem como objetivo evitar que o valor de aquisição destes bens seja atualizado por intermédio de cadeias de doações familiares isentas de Imposto do Selo e, assim, suprimidas ou reduzidas as mais-valias latentes aquando de uma futura alienação onerosa. Contudo, há que dizer que a natureza e a realidade económica dos valores mobiliários diferem substancialmente das dos direitos reais sobre bens imóveis, pelo que a operacionalização desta norma anti abuso ao nível dos valores mobiliários é, no mínimo, questionável.

Contrariamente ao que sucede com a generalidade dos bens imóveis, os valores mobiliários são caracterizados por um muito mais elevado nível de volatilidade, podendo o seu valor sofrer variações abruptas de ano para ano, de mês para mês, ou até de dia para dia, sem que para tal contribua qualquer tipo de planeamento fiscal, abusivo ou não. Assim, não é difícil concluir que um regime que determina, transversalmente, que o valor de aquisição de referência é aquele apurado “até aos dois anos anteriores à doação”, tem um potencial enorme para criar distorções significativas entre o valor de mercado (que seria o valor “target” do regime) e o valor fiscal, as quais, pasme-se, poderão ser até benéficas para o contribuinte (p.e., no caso de empresas que tenham desvalorizado nos últimos dois anos)!

Sem prejuízo, para além da clara limitação conceptual da medida, existem também constrangimentos no que respeita à sua aplicação prática, na medida que o legislador não concretiza de que forma é que este cálculo ajustado deve ser efetuado. Focando-nos no caso da transmissão gratuita de participações sociais (para empresas constituídas há dois anos ou mais), muito sucintamente, a fórmula de cálculo do valor tributável em sede de Imposto do Selo depende, entre outras variáveis, do valor dos capitais próprios da empresa, dos resultados líquidos obtidos pela sociedade participada nos dois últimos exercícios anteriores à transmissão, do fator de capitalização dos resultados líquidos e prevê uma correção à valorização dos imóveis detidos pela sociedade (prevalecendo o valor patrimonial tributário (“VPT”) sobre o valor contabilístico). Com tantas variáveis em jogo e dada a realidade tão complexa de uma sociedade, facilmente se identificam alguns temas para os quais inexiste, atualmente, uma resposta cabal, como, por exemplo, qual o método de cálculo a utilizar no caso de uma sociedade constituída entre 2 e 4 anos antes da data da transação. Por outro lado, uma sociedade que se tenha tornado inativa nos últimos dois anos, poderá ser transferida com um valor fiscal apurado com referência a um período de plena atividade económica, potenciando um efeito completamente contrário ao da suposta intenção do legislador.

Por outro lado, no caso de aquisições gratuitas, ainda que isentas de Imposto do Selo, previamente à entrada em vigor deste novo regime, o valor sobre o qual seria devido esse imposto era determinado pela Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”) no âmbito da emissão da liquidação de Imposto do Selo (podendo, nesse momento, ser contestado pelo contribuinte). Ora, caso esse valor passe a ser determinado em função de uma data dois anos antes da data da doação, quem (a AT ou o contribuinte) determinará o (novo) valor relevante do custo de aquisição para efeitos de IRS? No caso dos bens imóveis tal nunca foi problemático, porquanto, o mesmo se baseia no VPT que existe no sistema da AT, sem ser necessária qualquer outra valorização decorrente da doação.

Por último, na ausência de qualquer norma transitória a respeito do momento da produção de efeitos desta alteração legislativa, poderá abrir-se o espaço para discussão acerca do tratamento que será concedido, em sede de IRS, ao cálculo das mais ou menos-valias derivadas de operações de transmissão de valores mobiliários doados (o que poderá ter ocorrido há vários anos) que tenham sido realizadas entre 1 de janeiro de 2022 e 28 de junho de 2022 (data de entrada em vigor do OE 2022).

Concluindo, face a tudo o que foi exposto, facilmente nos questionamos se, no cômputo geral, o alargamento da medida em questão aos valores mobiliários, nos termos em que foi efetuado, irá surtir os efeitos práticos desejados pelo legislador e se não irá criar as condições para climas de maior incerteza e novas oportunidades de planeamento fiscal, frustrando, em certa medida, o seu cariz anti abuso.

Face a tudo o quanto foi exposto, não podemos deixar de comentar que, neste ecossistema de incerteza legislativa, económica e política que atravessamos, a alteração do método de determinação do valor de aquisição das participações sociais doadas tem o potencial para impactar significativamente os futuros planos de reestruturação de grupos familiares em Portugal. Aconselhamos, por isso, aos nossos empreendedores, especial cautela e cuidado no momento de repensar a organização dos seus grupos de sociedades, por forma assegurar o correto enquadramento fiscal das operações e a antecipar eventuais consequências fiscais indesejadas.

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