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BEPS 2.0: incapacidade das regras atuais de preços de transferência de dar uma resposta plena aos desafios do presente e do futuro?

No passado mês de outubro, a OCDE publicou, em cumprimento do mandado emitido pelo G20, uma proposta de “abordagem unificada” que visa dar passos no sentido de estabelecer uma resposta adequada aos desafios de índole fiscal originados pelos novos modelos de negócio digitais (“economia digitalizada”).

Esta proposta baseia-se em dois pilares: atribuição de novas competências tributárias aos Estados (Pilar I, sobre o qual incidirá o presente artigo) e desenvolvimento de mecanismos que garantam uma tributação mínima nos casos em que a capacidade tributária de uma determinada jurisdição não cumpra com determinados critérios (Pilar II).

Esta proposta parte de duas realidades que, combinadas entre si, geram desequilíbrios e focos de tensão em matéria de fiscalidade internacional: por um lado, um enquadramento fiscal internacional desenhado há décadas e que assenta na capacidade de tributação dos Estados em função de um determinado nível de presença física local, e, por outro lado, a proliferação de novos modelos de negócio, como consequência do progresso tecnológico, assentes na capacidade crescente das empresas multinacionais de operarem internacionalmente sem que, para isso, necessitem de contar com uma presença física local em cada um dos diversos mercados em que os seus bens e/ou serviços se comercializam.

Conforme se tem vindo a verificar nos tempos mais recentes, estes desequilíbrios criam um clima favorável à proliferação de medidas fiscais unilaterais por parte dos Estados, não necessariamente coordenadas, as quais poderão, não só ameaçar a sustentabilidade de um enquadramento fiscal internacional que se pretende homogéneo e coerente, mas também gerar efeitos macroeconómicos adversos, ao nível do investimento e do crescimento globais.

Por forma a dar resposta a estes desequilíbrios, o objeto desta proposta de “abordagem unificada”, no que ao Pilar I se refere, assenta no reconhecimento da necessidade de estabelecer novas competências tributárias dos Estados, que não dependam exclusivamente dos critérios de presença física tradicionalmente considerados (v.g, filiais, sucursais, estabelecimentos estáveis).  Estas competências estender-se-ão aos casos em que as empresas multinacionais têm uma exposição significativa e duradoura a determinados mercados, independentemente de contarem ou não com uma presença física nos mesmos. Do ponto de vista prático, a verificação do cumprimento deste requisito basear-se-ia num indicador objetivo como um nível mínimo de proveitos, com uma ponderação que tem em conta a dimensão do mercado. Note-se que a OCDE refere que estas novas regras de nexo aplicar-se-iam não só aos modelos de negócio que impliquem vendas remotas, mas também quando se atue num mercado através de distribuidores terceiros, sendo essencialmente aplicáveis aos negócios que são “large consumer-facing”.

Uma vez definidas estas novas competências tributárias, torna-se imperioso estabelecer novas regras de imputação de resultados entre entidades pertencentes a um mesmo grupo multinacional, nas distintas jurisdições relevantes, dado que os métodos de preços de transferência tradicionalmente usados assentam na premissa da existência de um determinado nível de presença física nas ditas jurisdições. A este respeito, é interessante referir a ênfase que a OCDE dá à incapacidade do enquadramento atual de preços de transferência, em particular os princípios de “plena concorrência” e de “entidade separada”, de enfrentar, por si só, os desafios desta nova era.

Como consequência do exposto, a OCDE sugere uma convivência simultânea entre as regras tradicionais de preços de transferência e as novas regras vindouras, as quais estão ainda por definir em detalhe. Enquanto que a eficácia das primeiras incidiria sobretudo no que se refere à imputação de resultados associados a atividades de natureza rotineira, as segundas assumiriam particular relevância na imputação dos resultados residuais (não rotineiros) gerados pelos grupos multinacionais (v.g., resultados decorrentes da exploração de ativos intangíveis de diversa índole).

O mecanismo de aplicação das novas regras de imputação de resultados assentaria em três blocos:

  1. Cálculo do resultado residual obtido por um grupo multinacional (diferença entre o resultado total do grupo e o resultado imputável a atividades rotineiras). Ao valor obtido, aplicar-se-ia uma ponderação para determinar que proporção seria imputável às “jurisdições de mercado”, o qual seria repartido entre estas em função de um determinado critério (por exemplo, em função das vendas relativas em cada jurisdição);
  2. As atividades de comercialização e distribuição continuariam a ser tributadas de acordo com as regras existentes. Não obstante, por forma a evitar disputas tributárias no futuro, poder-se-ia estabelecer esquemas remuneratórios pré-estabelecidos para este tipo de atividades.
  3. Nos casos em que as entidades locais levem a cabo funções adicionais às previstas em B, estabelecer-se-ia a aplicação de uma remuneração adicional, cuja determinação assentaria na aplicação de regras de preços de transferência.

Dependendo das características particulares de cada caso concreto, é razoável antecipar-se que este mecanismo possa vir a originar, face ao cenário atual, uma diferente distribuição de resultados tributáveis entre jurisdições, mais dispersa, dado que excederá critérios de pura presença física e reconhecerá um maior valor ao “mercado” de consumo final de bens e/ou serviços. Como tal, esta nova realidade implicará uma complementaridade das regras atuais de preços de transferência com outros critérios ainda por precisar, por forma a reconhecer uma imputação de resultados tributáveis a jurisdições de “mercado”, nas quais não exista uma presença física.

Finalmente, destaca-se que esta proposta da OCDE foi sujeita a consulta pública, esperando-se uma solução de consenso durante o mês de janeiro, para posterior publicação da versão definitiva do documento até ao final de 2020.

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