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Benchmarking de operações financeiras intragrupo: aquilo que (não) sabemos sobre os fatores de comparabilidade

Cátia Carreira, Manager EY, International Tax and Transaction Services, comenta algumas das mais recentes considerações da Autoridade Tributária e Aduaneira na análise dos critérios utilizados pelas empresas para a determinação das taxas de juro a aplicar em operações financeiras intragrupo.

O mais recente regime de preços de transferência (definido pela Portaria n.º 268/2021, de 26 de novembro, doravante “Portaria”) veio trazer alterações significativas nos critérios que definem a obrigação da preparação e/ou submissão da documentação de preços de transferência. No entanto, a lei continua clara no que refere à obrigação do sujeito passivo – mesmo que dispensado pelos critérios de obrigação de documentação – de “comprovar que os termos e condições praticados nas operações vinculadas estão conformes com o princípio de plena concorrência, sempre que seja notificado para tal”. De facto, a necessidade de notificação por parte da Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, “AT”) para o contribuinte demonstrar a observância do princípio de plena concorrência não deve levar as empresas a descurar a preparação de estudos de preços de transferência contemporâneos ao abrigo de eventuais dispensas aplicáveis. Efetivamente, a AT tem vido a salientar, nas suas decisões, a atitude reativa por parte dos contribuintes na preparação de estudos e pesquisas de dados, designadamente em casos em que estes apenas foram apresentados no âmbito do exercício de direito de audição sobre procedimentos inspetivos como contraprova à atuação das autoridades fiscais.

Neste artigo vamos destacar algumas das mais recentes ações da AT na análise dos critérios utilizados pelas empresas para a determinação das taxas de juro a aplicar em operações financeiras intragrupo, particularmente sob a forma de suprimentos. O interesse da AT nesta matéria não tem recaído somente sobre as empresas com volumes de negócios que resultam na obrigação de documentação, nem tão pouco sobre operações transfronteiriças apenas. Atenção tem sido dada a operações financeiras intragrupo cujo spread revela um desvio significativo comparativamente aos spreads praticados nos financiamentos bancários, dando origem a ações de escrutínio, por parte da AT, à luz das regras de preços de transferência.

O exercício a realizar, seja pelo sujeito passivo seja pela AT, assenta na comparação da taxa de juro praticada entre entidades relacionadas face a uma transação comparável – isto é, com características idênticas – realizada entre partes independentes, ou seja, entre entidades que não se encontrem em situação de relações especiais. No fundo, o racional deste exercício prende-se com a análise das opções realisticamente disponíveis para o sujeito passivo no momento da decisão de se financiar junto do grupo ou junto de terceiros. E atenção deve ser tida pelo contribuinte caso pretenda justificar uma taxa de juro superior suportada junto dos seus acionistas com o argumento de que enfrentou dificuldades no acesso ao crédito bancário caso não esteja em condições de fazer prova dessa impossibilidade, ou de que o custo desse financiamento por parte das instituições financeiras era de tal modo elevado que um empréstimo junto dos acionistas se mostrou uma alternativa compensadora, pois a AT não tem deixado por analisar a existência efetiva dessas provas.

Tal como no caso das operações comerciais, a base da análise comparativa de operações financeiras será sempre a consideração dos mais importantes fatores de comparabilidade, sendo fundamental que a realidade comparada e a realidade comparável apresentem características idênticas, ou que seja viável realizar os ajustamentos necessários de modo a assegurar, o tanto quanto possível, essa comparabilidade.

Os fatores de comparabilidade, tal como enunciados na Portaria, devem incluir aspetos como as caraterísticas das operações financeiras, as funções desempenhadas pelas empresas (considerando-se nelas os ativos utilizados e riscos assumidos), os termos e condições contratuais, as circunstâncias económicas do mercado, a estratégia de mercado adotada e outras caraterísticas relevantes das partes envolvidas nas operações financeiras em análise.

No caso de um empréstimo financeiro, e conforme referem as Orientações da OCDE em matéria de preços de transferência, algumas das principais características das transações a ter em conta incluem o montante da operação, a sua maturidade, os termos de reembolso, a natureza/propósito do empréstimo, o nível de senioridade e subordinação, a localização geográfica do mutuário, a moeda, existência de colaterais ou garantias, ou se a taxa de juro é fixa ou variável.  No fundo, devem ser considerados todos os fatores que têm influência na determinação da remuneração de mercado dos empréstimos concedidos.

Considerando estes fatores de comparabilidade, o primeiro passo deverá ser sempre na direção da análise de potenciais comparáveis internos, ou seja, verificar a existência de operações financeiras com características semelhantes realizadas por uma entidade do grupo junto de uma entidade não relacionada, sendo sempre este o método de análise preferencial. Apenas se se concluir pela inexistência de comparáveis internos devem ser utilizados comparáveis externos, isto é, analisar as taxas de juro praticadas em operações comparáveis realizadas entre duas entidades independentes externas ao grupo económico. A utilização de comparáveis externos assenta, por norma, ou na análise das taxas de juro praticadas por entidades bancárias junto das empresas ou no recurso a bases de dados especializadas para a realização de estudos de benchmarking.

Nos parágrafos seguintes, e com base em recentes decisões do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”), vamos destacar alguns dos critérios de comparabilidade que têm vindo a ser questionados pela AT no âmbito da verificação do cumprimento do princípio de plena concorrência em operações financeiras sob a forma de suprimentos.

  • Circunstâncias económicas do mercado - geografia: a localização geográfica das entidades, entre outras características do mercado onde as entidades operam (como sendo a indústria, o panorama concorrencial, entre outros), podem influenciar significativamente as condições económico-financeiras vigentes e, com isso, as taxas de juro praticadas nos mercados financeiros. No que refere à localização geográfica dos mutuários das operações financeiras, que confere uma das formas mais diretas e analíticas de considerar este fator de comparabilidade, se por um lado a AT tem questionado a utilização de bases de dados internacionais em detrimento de bases de dados nacionais, alegando que o facto das entidades identificadas como comparáveis não serem portuguesas constitui, por si só, razão para que as operações não gozem do grau de comparabilidade exigido, por outro, cautela deverá ser tida pelo contribuinte ao apresentar exercícios de ajustamento que pretendam colmatar potenciais diferenças geográficas (por exemplo, com base no diferencial de risco de país), pois em algumas situações a AT tem vindo a alegar que tal ajustamento, especialmente se resultar numa majoração, surge como inapropriado e só se explica pela necessidade de alcançar taxas de juro mais elevadas.
  • Circunstâncias económicas do mercado - data da operação: a data em que a operação financeira é contratualizada é também um fator que pode influenciar a definição de uma taxa de juro de mercado, sendo essencial a limitação do período temporal na pesquisa de operações comparáveis, pois permite a captação das circunstâncias económico-financeiras verificadas no momento da transação. Uma das principais questões que se pode levantar no que respeita a esta temática prende-se com a utilização de transações comparáveis correspondentes à data da contratualização da operação vinculada em análise, em detrimento de operações comparáveis realizadas à data do período (posterior) sobre o qual o contribuinte pretende analisar os juros intragrupo suportados. No caso de ser preparado um estudo de benchmarking com base em operações comparáveis contratadas no mesmo ano que os suprimentos, sendo o período inspecionado posterior ao de contratualização da operação, pode a AT alegar que os contratos intragrupo não acompanharam a evolução do mercado e mantiveram o mesmo spread que fora definido inicialmente, concluindo que outras operações realizadas posteriormente gozem de maior grau de comparabilidade. Mas esta não é a única posição da AT. Efetivamente, numa outra situação em que o sujeito passivo submeteu uma análise utilizando dados que refletiam as condições de mercado vigentes à data da negociação da operação, veio a AT contrapor com um exercício realizado com dados anteriores à data da negociação da operação, sendo evidente a inconsistência de posições das equipas de inspeção.
  • Maturidade da operação e condições de reembolso: perante a análise de de comparabilidade no que respeita à maturidade das operações financeiras intragrupo, atenção redobrada deve ser tomada no caso dos suprimentos, sendo que a AT poderá desconsiderar esta posição defendendo que, sendo a estipulação do prazo estabelecida entre o contribuinte e os seus acionistas, esse prazo será sempre flexível, por ser acordado entre entidades com relações privilegiadas. A jurisprudência mostra-nos ainda que a posição da AT pode também ser idêntica no que toca às condições de reembolso do capital em dívida, alegando que a data de reembolso será sempre flexível dado a coincidência, no caso analisado em particular, entre credores (os sócios) e a administração da sociedade.
  • Existência de garantias: a existência de garantias de um empréstimo é um elemento que pode diminuir, acentuadamente, o risco inerente, para o credor e, consequentemente, justificar uma taxa de juro inferior à de um empréstimo semelhante, mas sem garantias. Considerando as empresas a operar no ramo imobiliário em particular, e especialmente nos casos em que os financiamentos intragrupo visem a aquisição de imóveis, veio a AT argumentar que os financiamentos em causa estão assim protegidos com a existência de uma garantia real. Deste modo, pode a AT considerar que a tangibilidade dos ativos reduz o risco do financiamento para os investidores na medida em que servem de garantia em caso de incumprimento, facto que permite baixar significativamente o custo do capital. Vem ainda este tema relacionar-se diretamente com a necessidade da verificação da comparabilidade funcional das entidades – neste caso a operar no ramo imobiliário – podendo a AT desconsiderar as operações selecionadas pelo sujeito passivo caso estas não envolvam nem funções, nem ativos, nem riscos similares à parte testada.
  • Subordinação: as cláusulas de subordinação, aplicáveis aos suprimentos, retratam que, no caso de falência ou liquidação da entidade devedora, os financiamentos apenas são reembolsados após os demais credores por dívida não subordinada. Este é um fator de comparabilidade comumente utilizado nas análises de preços de transferência, levando muitas vezes à exclusão de comparáveis internos (como é o caso de empréstimos obtidos junto dos bancos) e à não utilização das taxas de referência das entidades bancárias, optando-se na maioria dos casos pela elaboração de estudos de benchmarking com base em emissões de dívida subordinadas. Não obstante, pode a AT alegar que os acionistas, ao contratualizarem suprimentos, incorrem em riscos menores comparativamente às entidades independentes ao financiarem sociedades, uma vez que os sócios gozam de um leque de direitos sociais que lhes permite um mais preciso e permanente acesso à informação sobre a situação financeira da sociedade – podendo inclusive desempenhar cargos de administração ou gerência dos negócios da sociedade –, desta forma sendo capaz de exigir os seus créditos em situação privilegiada face aos demais credores sociais. Perante a utilização de emissões de dívida subordinadas em estudos de benchmarking, as autoridades fiscais podem assim alegar que a equiparação dos suprimentos aos instrumentos financeiros do mercado de capital de risco resulta no enfraquecimento da proteção dos credores sociais, e que, considerando a partilha dos sucessos e insucessos empresariais e no acesso à informação sobre a situação financeira da sociedade, não subsiste qualquer razão para que uma operação de financiamento por parte dos sócios, a par dos instrumentos de capital próprio, não seja reconduzida, em termos de remuneração, a uma operação de crédito bancário normal. Deste modo, é possível que a AT conclua que não é plausível a comparação de suprimentos a obrigações subordinadas, dado que se fundamenta em créditos que têm um nível de risco elevado, e que se as operações financeiras em análise fossem realizadas entre entidades independentes não teriam um enquadramento igual ao das obrigações subordinadas, quer a nível do risco inerente à operação quer no caso de falência.

Dos temas analisados supra, é de destacar a urgente necessidade de uma consciencialização generalizada das empresas para a preparação de estudos de preços de transferência contemporâneos às operações financeiras intragrupo, nacionais e transfronteiriças, de modo a justificar o cumprimento do princípio de plena concorrência, independentemente da verificação, ou não, da obrigação do contribuinte de preparação e/ou submissão da documentação de preços de transferência conforme previsto na Portaria.

Relativamente aos fatores de comparabilidade, e neste caso no que toca às operações financeiras em particular, torna-se cada vez mais evidente a exigência de uma análise técnica especializada essencialmente focada em três fases: (i) análise criteriosa das características da operação intragrupo em questão, (ii) verificação criteriosa da existência, ou não, de comparáveis internos que cumpram com os requisitos de comparabilidade, e (iii) análise comparativa com recurso a comparáveis internos ou externos devidamente sustentada pelas melhores práticas em matéria de preços de transferência, antecipando tanto quanto possível os principais desafios que o contribuinte possa enfrentar numa potencial ação inspetiva da AT.

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